Carta ao editor,

Montevidéu, madrugada, 16 de janeiro de 2020


Ai Tadeu, não deu, não consegui, caguei feio, escroto. Foi mal. 

Caí num poço de ambição mesquinha, egocêntrica, egoísta, covarde, sem coragem de ligar o alarme quando o tempo ainda existia, quando reconhecer as minhas impossibilidades seria talvez compreensível, razoável, responsável, perdoável, decente. Mas não, eu insisti em mentir pra mim mesma e pra sociedade que eu tinha a capacidade de fazer tudo ao mesmo tempo. Com os super-poderes das super-heroínas de fábulas inconclusivas que eu invento pra minha filha sobre umas tais de feministas que lutam todos os dias contra o vilão mais invencível que o mais temível de qualquer história em quadrinhos que possa ter existido, um sábio senhor invisível, multifacetado, onipresente, opressor de qualquer gênero —masculino, feminino, inter, trans ou inexistente—, cujo poderoso assistente, gestor do sistema político vigente, hoje capitalista, outrora absolutista, feudalista, tribalista, cavernícola, whatever, mas sempre coercitivo, imperativo, infalível, intransigente e que a gente chama de patriarcado, deus ou subconsciente, mas que seja lá qual for o termo ou a crença, nada mais é que aquela coisa latente, aquela força-maior, gravitacional e persistente, que nos reprime, deprime, convence, submete. Em casa e na rua —porque simplesmente não há lugar algum neste planeta que seja seguro para ser mulher


Mas de volta àquela mentirinha gostosinha da minha mente, aquela historinha da carochinha longe de excluir mil verdades sinceras, abundantes, severas, eu seguia adiante. Dentro da minha cabecinha sem freio, sem filtro, sem limite, eu alimentava fantasias implausíveis de protagonizar uma ilusória realidade, como se houvesse qualquer probabilidade de vencer o malvado patriarcado/deus/subconsciente. E assim, cega, iludida ou quem sabe otimista, eu atravessava o passar dos dias com a certeza infundada de que era normal e possível ter uma carreira profissional ascendente, passar 10 horas fora de casa diariamente, chegar e manter a casa reluzente, cozinhar a melhor comida variada, criativa, nutritiva, cheia de quinoa e beterraba, divertir a Annita com brincadeiras didáticas não sexistas, fazê-la dormir rápido, sozinha, de dentes escovados e pijama de unicórnio, sem precisar pedir, explicar, pedir de novo, pedir por favor, pedir mansinho, ameaçar com castigo, esquecer, lembrar, voltar a pedir, implorar, repetir e repreender 26 vezes em um intervalo de meia hora sem perder as estribeiras, o juízo, e ah, claro, sem deixar de ler um livrinho infantil construtivo (algum cult adaptado da Clarice Lispector ou da Virginia Woolf). E sem deixar tampouco de dar aquele beijinho clássico de boa noite, com um doce sorriso inquebrantável e um amor incondicional e inacabável graças ao dom sagrado da maternidade, à vocação inata de ser mãe, ao instinto materno inquestionável. Porque nesse ideal platônico do meu mundo cor-de-rosa-choque, pateticamente perfeito embora surreal, eu jamais conheceria a fatiga, jamais estaria exausta, improdutiva, infeliz. É sério Tadeu, eu profundamente acreditava que finalmente ligaria o computador e me dedicaria ao deleite da minha terceira jornada laboral voluntariamente requisitada, que você carinhosamente me confiou diante do pedido desesperado da amiga querida que tinha ficado desempregada naquele país alheio onde ela vivia aquela eterna sina do destino na condição de mulher-mãe-solteira-imigrante. No meu pretenso comercial de margarina de um canal GNT da vida, era tudo tão perfeito que obviamente era irreal. A única realidade vigente é o sistema de agonias e tiranias imponentes que sempre existiram mas que só começaram a fazer sentido lá com aquele nosso histórico amigo barbudo que teorizou a mais-valia e se converteu no messias dos nossos opressores favoritos, os machistas-em-negação do pseudo-progressismo que até hoje não digeriu que a revolução será feminista ou não será. Que sem igualdade de gênero não existe igualdade de classe; e que quando o Nacho busca a Annita na escola, faz e serve a janta, dá o banho e cata os piolhos infinitos do cabelo dela antes de deixá-la comigo limpa e alimentada, ele não está sendo um bom pai, mas sim e somente assumindo os deveres da pátria-potestade, a responsabilidade dele como progenitor; que nada disso que ele faz é um favor generoso de um ex-marido nada ressentido e todo empoderado, que nada disso significa que ele me apoia ou respeita, por favor entendam, são somente as mínimas obrigações de um pai. E que eu não sou uma mãe ruim ou ausente quando chego tarde do trabalho porque tenho um emprego exigente, porque invisto na minha carreira ascendente e almejo estraçalhar o teto de cristal. Mas não tem jeito, “não tem dó no peito”, nenhum argumento faz eco, é só mais um grito oco, histérico, estéril. 




Foi 
 assim que você pecou, Tadeu. Por empatia ou piedade, você me ofereceu a maravilhosa oportunidade que eu tanto queria, necessitava, mas não merecia: a de traduzir o livro da Amaia. A de encarar essa maestria e terminar de enlouquecer a minha inner feminista com orgasmos intelectuais e epifanias pirotécnicas sobre a “subversão da economia”, sobre a equação equivocada que rege a sociedade de bens-serviços-consumo, sobre a fonte primária da organização de um Estado, sobre o moinho da produção e distribuição de riquezas supérfluas, sobre uma resposta inconveniente ninguneada pela ciência, pela academia, pela política mundial. Sobre uma submissão imposta a partir de uma distopia, esdrúxula; sobre esse silêncio estridente que permeia tudo o que a gente vive e sente; sobre essa ameaça ao status quo, sobre a verdadeira origem da desigualdade social, do poder, sobre nós mesmos, sobre como funciona o PIB de cada país, sobre o que nem o nosso superestimado papai noel da mais-valia, muito menos as mãos e mãe invisíveis do Adam Smith; sobre o que nem o idolatrado Che Guevara enquanto ministro de Economia da Revolução cubana, nem o aparentemente desconstruído Justin Trudeau, nem sequer o nosso queridinho Piketty puderam dimensionar. Todos homens, claro. Entender a subversão feminista da economia é aceitar um soco no estômago, um tapa na cara ou ambos. E assim será para leitores homens e mulheres de qualquer contexto. Ali, em alguma página será inevitável encontrar aquela parcela de culpa por existir, prévia a uma indignação eufórica e desenfreada de quem acaba de consertar os óculos da realidade silenciada e não se conforma de não ter enxergado outrora tanta coisa tão óbvia, e então agora, depois de submergir nesta obra e voltar à superfície, se sentirá um pouco mais esclarecido ou empoderado e talvez até tente refletir sobre si, questionar-se quanto aos micro-machismos diários, que praticamos todos porque o tenemos incorporado, enraizado, embutido, mas que talvez se proponha a estar mais atento, mais empático, mais igualitário a cada resolução de ano novo. E talvez assim podamos, a conta-gotas, a contragosto e na contramão da sociedade insolente, melhorar um pouquinho este mundo.

É que Tadeu, querido, talvez também haja sido por isso que não deu. Toda aquela overdose de argumentos e conceitos, às vezes abstratos de tão intensos, explicando com supremacia tantos dos meus tormentos que eu julgava inefáveis estavam ali vomitados na minha cara e em espanhol. Porque enquanto eu escrevo toda essa ladainha, madrugadas inteirinhas, a montanha de louça suja está ali se aglutinando na pia, há tantos, tantos, tantos dias que superam os dedos das duas mãos. Porque tudo o que eu mais queria é que toda aquela porra escrota de sujeira da cozinha desaparecesse da minha vista sem necessidade alguma de qualquer força produtiva —minha (desvalorizada e gratuita) ou da Vanessa, quem um dia eu contratei desesperada para me ajudar, e me torturei com a culpa de reproduzir as características do mercado, as injustiças do capitalismo, naturalizando o abominável fato de que ela infelizmente vive desse trabalho desgraçado do lar que sustenta o próprio sistema que nos escraviza. E embora eu vomite toda essa verborragia disléxica, esse meu pranto substantivo e adjetivado é apenas um conjunto ínfimo de “micro-relatos” (nas palavras da própria Amaia), que podem soar exagerados, dramáticos, drásticos e repletos de white people problems, mas que é só uma tentativa, ainda que vulgar, de ilustrar a rotina cotidiana inerente ao conflito capital-vida, cíclico e infinito, que este livro elucida, disseca. É, Tadeu querido, lá no fundo foi também por isso que eu fudi com tudo e não consegui cumprir meu compromisso contigo, vacilei bonito, abandonei o barco. E lendo toda essa agonia agora parece tudo tão óbvio que indigna. Aí você pensa, mas Pati, era só avisar, não tinha problema, saiu um emprego fulltime novo e claro que não rola de conciliar. Era só mandar um zap, um alô, pedir socorro, contar comigo, lembrar que não é só um contrato, que eu também sou seu amigo, a gente dava um jeito, era mais que compreensível. Era um gesto tão singelo, tão simples, fácil, sensato, rapidinho, tão honesto, prudente... Mas não, eu falhei por completo. Não era tão óbvio durante todo o processo. No passar de cada dia, eu realmente acreditava, repito, no meu próprio comercial de margarina do século XXI de algum GNT da vida. Na minha cabeça inconsequente inclusive soava aquela vinheta da BandNews FM, onde eu trabalhava e por isso tanto escutava, que fala da mulher moderna bem-sucedida, bem resolvida, independente, que dá conta de tudo sozinha, passa batom e ainda por cima é magra. A representação feminina exata do que a Amaia originalmente abrevia como “BBVAh” (fazendo um trocadilho com o banco espanhol BBVA): o típico homem-adulto-branco-heteronormativo de classe média. Eu bem que queria, Tadeu, apesar de tanta culpa, eu bem que tentei ter tanta força y tanto glamour. Na minha cabeça rodava nonstop, em loop, o puto comercial de margarina com a trilha sonora da BandNews FM, no qual eu era a super-heroína capaz de tudo, porque dava perfeitamente pra cuidar da filha de manhã, deixar ela na escola, correr pro trabalho, zero estresse com as responsabilidades de sempre —além da galera misógina e xenófoba da qual eu sou chefa (para outro capítulo)—, sair no horário pra pegar o baú em vez de um uber muito mais caro, porque fodam-se as dívidas, o pai já está agoniado no zap perguntando a hora que eu saio, contando que a nossa filha está quase dormindo e triste me esperando, e eu ainda dava pra chegar com o melhor sorriso estampado para cuidar da minha mimosa Annita e da nossa casa encerada. E que, depois de garantir que ela dormia divina, eu ainda fazia a comida, limpava a cozinha e, finalmente, dedicaria pelo menos duas horinhas concentradas (com um laptop nada lento) de madrugada na tradução deste livro revoltoso de verdades doloridas, que tocam lá na espinha e fazem sangrar as feridas esfregando na cara que a porra da margarina ou da vinheta não passa de publicidade capitalista-sexista que nos hipnotiza. E que o sustento de tudo isso está no trabalho doméstico, que contempla um conceito muito mais amplo —dos cuidados da casa, dos filhos, de um familiar doente ou idoso—, a base invisível e invisibilizada, como a própria Amaia distingue, a condição sine qua non para o funcionamento da economia local, nacional e mundial. 




Mas quando eu tardiamente desconfiei que não dava, Tadeu, te escrevi de madrugada, puxando qualquer assunto, se “aporte” em português podia ser “aporte” mesmo ou “insumo”. Algo assim, péssimo, fazendo inclusive parecer que estava tudo fluindo. Definitivamente o pior approach ever. E eu sei que não adianta chorar sobre o leite derramado, e que não justifica nada do que eu diga. Eu simplesmente fiz a maior merda da década. E pior, Tadeu, essa minha índole que agora procrastina, inerte, mantida por um certo prazer que diverte, embora cheio de culpa, continua: escreve, explica, insinua, vomita um monte de palavras amontoadas, em fila, estupradas por uma obsessão lírica que aspira a ser prosa forçando rimas famélicas de poesia ou, pelo menos, algum sentido que não fosse simplesmente o limbo manhoso, ansioso, impulsivo, perdido, inexpressivo mas paradoxalmente caprichoso nos detalhes vazios de um esboço do meu tormento típicamente adolescente de pensamentos intensos, extensos, sem alento, sem consenso, sem abraços, sem amigos confidentes, sem laços e sem espaço que não seja escrever sem descanso, com descaso, sem corte, sem norte, sem clareza, sem destreza, sem tempo, sem dinheiro, sem direito, sem vergonha, sem consentimento, sem dormir, sem sossego, sem saber, querendo sem querer, continua porque jorra, sangra, dana se não sai pra fora essa toxina radioativa, essa voz interna, eterna, que todo mundo tem mas sei lá se todo mundo escuta, seja porque fala baixinho ou sussurra, que a gente chama de consciência, que nos guia todo santo dia e nos mantém na linha, faz a gente conviver em sociedade, conforme um conjunto de valores culturalmente construídos, sejam morais ou pessoais, e que nos castiga com a culpa católica quando alguma coisa sai errada. Mas às vezes também dá um tiut, surta, pira, grita. E agora neste preciso instante dentro da minha cabeça, exatamente agora, ela está errante, gira, suplica por um rumo, ou pelo menos alguma atenção, um cafuné, um carinho. Porque ainda por cima eu tenho a cara de pau de ser a filha da puta que fez a merda e me fazer de vítima da vida e do sistema.


Não sei mais o que dizer e continuo dizendo. Você me perdoa, Tadeu? Faz o que quiser com essa bosta escrita, não leia, ignora, me bloqueia, me chinga. Ou então manda uma resposta lacônica e fria só por diplomacia. Ou de repente sei lá, vai que você gosta e me responde em seguida dizendo que eu até sou talentosa e que eu fique tranquila, que pra tudo tem saída. Ou então, imagina, em mais um dos meus delírios cor-de-rosa você me liga na hora, diz que eu sou foda, maravilhosa, que tudo que eu vomito tem sentido, que não tem nada de absurdo porque todo gênio é loucamente intenso, que eu só preciso de juízo! E nessa massagem gostosa no meu ego inseguro você insiste, diz que entendeu tudo, até as entrelinhas, as ironias, e a rebeldia implícita de críticas às formalidades e aos formatos de normas textuais, além da explícita e legítima contestação do conteúdo magnífico. E aí você se teletransporta e de repente bate na minha porta e me implora preu casar contigo, hahaha (não pude resistir à piadinha inapropriada, hahaha). Mas agora sério, de repente você adora mesmo e até me faz uma luxuosa proposta de, quem sabe, publicar o meu tormento no livro finalmente traduzido, como um prólogo ou um adendo (até parece, relaxa). Não sei mais o que dizer, aaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaajdj denjd mdjssbdjdnebdjdndbdkrdjdnedjdndbdjdnebd estou no banheiro aaaaaaaaaaaaaaaaa aanxnebxkwnaxndns Frauen aller Länder, vereinigt euch! djensbdnj bsbxkdnsjaksdkfn me perdoa, Tadeu? Aaaaaaaaaaaaaa aaaanddn xndbdjx cbejxbd bsbxiddjjssnskfkdosnwjdoxdn aaaaaaaaaaaaaaa onde que desliga????????? Tchau.


Da sua eterna, livre, linda, louca e impune admiradora,


Patrícia Álvares